quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Donington por Ernesto Rodrigues

Frank Richardson, comissário de pista, era um dos muitos funcionários do autódromo de Donington Park que estavam magoados com as críticas publicadas na imprensa inglesa contra a escolha do circuito como palco do GP da Europa de 1993 de Fórmula 1. Um dos principais argumentos dos críticos era o de que Donington, uma pista tradicional das provas de motos e que também fazia parte do calendário das categorias menores do automobilismo britânico, não tinha pontos de ultrapassagem.

Dez anos depois daquele histórico GP da Europa, o terceiro da temporada de 93, Richardson e outros colegas ainda tinham no rosto o sorriso genuíno do orgulho, ao lembrar que Senna precisou de apenas uma volta da corrida, a primeira, para saltar da quinta posição no grid para a liderança e demonstrar, aos críticos de Donington, que o circuito tinha, sim, não apenas um, mas pelo menos quatro pontos de ultrapassagem. Dependia, é claro, de quem estivesse no volante.

As imagens da largada, naquele 11 de abril chuvoso e frio, se tornaram uma referência em qualquer conversa sobre Fórmula 1. Segundos depois da luz verde, na freada para a longa curva à direita do final da reta, Ayrton ultrapassou Schumacher e embutiu imediatamente na traseira da Sauber de Karl Wendlinger. O momento seguinte, ninguém consegue explicar de forma satisfatória: num trecho veloz, sinuoso e em descida, que até em dias de sol qualquer moto ou carro de corrida fazia em fila indiana, Ayrton sairia para ultrapassar Wendlinger, por fora, do lado direito. Para espanto geral, Senna conseguiria manter a trajetória e ficar em condições de ultrapassar Wendlinger na freada para a curva do final daquela descida.

Senna colou na traseira de Damon Hill e levou apenas duas curvas para tomar-lhe a segunda posição. Passar o Prost, o líder da prova, seria demais, muitos pensaram. Momentos depois, na aproximação de uma curva em forma de grampo, já no trecho final do circuito, foi mesmo demais. Senna tomou a ponta de Alain, a tempo de fechar a primeira volta em primeiro lugar.

Emerson Fittipaldi acompanharia aquela primeira volta de pé, em frente à televisão, sem respirar, extasiado, em sua casa de Key Biscaine, na Flórida. No dia seguinte, ligou para Ayrton para dizer:

- Você nunca mais faz uma dessa na vida. Isso não existe!

James Hunt viu naquele momento o estabelecimento de uma nova referência de Ayrton para o resto dos pilotos. E disse a ele pessoalmente, depois da corrida: “Você já fez o que tinha de fazer este ano”.

Um confuso jogo de xadrez das equipes com o tempo e a chuva se seguiu àquela primeira volta. A Williams, totalmente perdida, chegou a fazer Prost parar sete vezes no boxe para troca de pneus. Damon Hill, que terminou em segundo apesar de ter sido vítima da tumultuada estratégia da equipe, resumiu: “Eu estava louco para a prova acabar logo. Não estava entendendo nada do que acontecia. E nem sei como consegui este segundo lugar”.

Absoluto na pista, Senna só encontrou uma certa dificuldade com outro piloto, que também dava um espetáculo quase incógnito naquela corrida. Ao saltar de décimo-segundo no grid para a quarta posição, também na primeira volta, Rubens Barrichello, pilotando uma Jordan-Yamaha, não poderia imaginar situação melhor naquele aguaceiro, em sua terceira corrida de Fórmula 1. Mas a confusão causada pela chuva e pela sucessão de pit-stops era tanta que, quando Senna se aproximou para colocar uma volta de vantagem sobre ele, Barrichello achou que era uma disputa de posição. Seu relato, dez anos depois: “Eu estava sem noção do que estava acontecendo. Largara sem nunca ter feito um pit-stop na vida, mas já tinha feito cinco paradas quando Senna se aproximou. Eu tinha visto o boxe da Jordan me mostrar placas dizendo que eu estava em terceiro e, depois, em segundo lugar. Na falta de novas placas e na dúvida, comecei a achar que estava liderando a corrida”.

A disputa não passou de duas curvas, mas foi suficiente para deixar Senna irritado. Barrichello, muito provavelmente, terminaria em segundo lugar, se não fosse traído a poucas voltas do final pelo motor Yamaha. Teve de abandonar e ainda engolir um grande sapo, o primeiro de sua carreira: a equipe divulgou que o problema era pane elétrica, mas, na verdade, garante Geraldo Rodrigues, manager de Barrichello na época, era falta de combustível. Os técnicos da Yamaha haviam imposto a versão da pane para não expor seu motor beberrão.

Depois da bandeirada, alegre como um menino, Ayrton foi abordado por um jornalista que queria saber se ele tinha passado algum susto durante a corrida. A resposta foi muito semelhante à que ele dera em Portugal, oito anos antes, depois da primeira vitória de sua vida, em outro dilúvio: “Susto? Quase morri do coração um monte de vezes!”

Em sua análise da corrida para Autosport, Nigel Roebuck atribuiu parte do espetáculo de Ayrton em Donington Park à suavidade do acelerador da McLaren, vital em pista molhada, em contraste com a forma abrupta com que o motor Renault despejava potência nas rodas motrizes das Williams de Prost e Hill. Além de reclamar dessa falta de maciez, Prost criticou a equipe Williams. Ao saber das reclamações de Alain, ainda no paddock de Donington, Senna respondeu com um desafio, pelo Jornal do Brasil: “O Prost, né? Ele tem sempre uma desculpa. Um bruto de um carrão desses e o cara fica chorando. Vamos trocar de carro. Pinta o carro dele de vermelho e branco e dá pra mim. Não quero nem mudar de cor, mas muda só de carro pra gente conversar depois!”

À consagração de Ayrton em Donington Park correspondeu um massacre de Prost. O jornal Le Quotidien, francês como Alain, reclamou: “Será uma injustiça se Senna não conquistar o quarto título”.

Um júri informal de dez campeões mundiais, Stewart, Fittipaldi, Lauda, Hunt, Andretti, Scheckter, Jones, Piquet, Rosberg e Mansel, reunido pela revista italiana Autosprint, considerou Prost “culpado” pelas duas derrotas da equipe Williams em Donington e, semanas antes, Interlagos. Na suposta “defesa” de Alain, a revista usou argumentos de Frank Williams. Na “acusação”, de Cesare Fiorio, ex-diiretor da Ferrari, conhecido desafeto de Alain.

Na irônica edição da reportagem, Alain foi considerado “culpado” das seguintes “acusações”: insolvência fraudulenta, por dissimular a própria incapacidade de correr na chuva; omissão, por não vencer duas corridas em que dispunha do melhor carro; reincidência no delito anterior, por perder duas provas consecutivas; calúnia, por dizer que sua Williams não andava bem no molhado; difamação, por tentar culpar a equipe por não ter feito a troca de pneus na hora certa no Brasil; abuso da credibilidade popular, por iludir os torcedores ao dizer que voltava a correr para ser campeão e omissão de distúrbios mentais, por não alertar a Williams sobre sua hidrofobia.

Em meio à onda e condenação por suas queixas, Prost mudou o tom dias depois da corrida, ao perguntarem sobre Senna durante um programa ao vivo, no horário nobre da Fórmula 1 da tevê francesa: “Ele é simplesmente imbatível. O que fez naquela primeira volta deixou todos os pilotos aturdidos. Foi inacreditável”.

Dez anos depois, Alain reconhece que “nada deu certo” em Donington. Mas faz uma ressalva: “No final da corrida, parecia que eu era o único estúpido na equipe Williams. E todo mundo cometeu estupidez naquele dia, principalmente com os dados da previsão de tempo”.

Donington Park diminuiu ainda mais o número de críticos de Senna na mídia. E poucos tiveram coragem de continuar colocando-o apenas na confortável classificação de “um dos melhores de todos os tempos”. A discussão passou a ser outra: onde colocá-lo, no apertado patamar em que já se encontravam Fangio e Clark? E outra pergunta começou a ser feita: qual o momento mais brilhante da carreira de Senna? Bernie Ecclestone seria um dos muitos que não iam demorar um segundo para responder: “Donington”.

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