sexta-feira, 1 de maio de 2009

Entrevista de Ayrton Senna à Quatro Rodas após o Tricampeonato de Fórmula Um

Entrevista concedida à revista Quatro Rodas em novembro de 1991, após conquistar o terceiro título. Digitalização a cargo de Fábio Bill.


Amadurecido, Senna persegue a fórmula do equilíbrio entre as emoções do piloto e do homem


O que amadurece um homem? A fama, a fortuna ou o encontro consigo mesmo? No caso de Ayrton Senna, o piloto é um exemplo de profissional bem-sucedido, rico, famoso, invejado, recordista.

Embora satisfeito com o sucesso, sente-se que, em seus momentos de reflexão, o homem supera o mito, volta à Terra e confessa que outras emoções invadem a sua alma, tornando-se convenientemente humano, autocrítico e preocupado com valores tão comuns e desejos tão prosaicos que surpreenderiam o mais idólatra de seus fãs.

Sensível à vida fora da milionária Fórmula 1, Senna preocupa-se com as guerras, sofre com as injustiças e inquieta-se com o desamor, mergulhando numa profunda melancolia bem própria dos mortais.

Confessa-se um tipo imperfeito, luta para melhorar, teme a Deus e emociona-se com o sorriso das crianças.

Enfim, um homem frágil, sonhador e carente. Muito mais sensível do que o Senna que ganhou o primeiro título há três anos.


QUATRO RODAS — Você teve mais trabalho enfrentando a dobradinha da Williams, Mansell e Patrese, do que coM o Prost. seu adversário natural nos últimos três anos?

AYRTON SENNA— Foi. A Williams entrou o ano com um carro inovador, uma máquina extremamente eficaz. Teve, é verdade, alguns problemas de confiabilidade, resultado da tecnologia que adotou para esta temporada. Mas, a partir do momento em que eles adquiriram a confiabilidade, a vantagem técnica sobre as demais equipes se acentuou. Não foi fácil compensar ou tentar se igualar. E, como você mesmo disse, não competi apenas contra um. mas sim dois adversários [suspiro]. Foi muito difícil. Mas as vitórias nas quatro pri-meiras corridas contaram muito a nosso favor.

QUATRO RODAS — Mudaram os adversários e também as dificuldades?

SENNA— Foi altamente gratificante, porque, apesar de todo o empenho e da dedicação que nos foi exigida, a gente continuou a luta pelo título, encontrando as soluções para cada dificuldade surgida durante a temporada.

QUATRO RODAS— Você teve um ano de sustos, principalmente nos treinos do GP do México e nos testes de pneus em Hockenheim. Foram acidentes por andar além do limite — na tentativa de atingir a performance da Williams — ou erros seus?

SENNA [grave, testa franzida] —De certa forma, uma dose de erro meu ao julgar mal uma situação, ao extrapolar um pouco. De outra, uma falta de material para atingir o nível que a competição exigia naqueles momentos. E uma dosezinha de risco que faz parte da profissão. As vezes, você é pego de surpresa. Acho que foi a soma desses fatores.

QUATRO RODAS — As vitórias na Hungria e na Bélgica parecem ter tido muita importância, pois naquele momento o campeonato começava a pender para o lado da Williams, não?

SENNA— Realmente, no meio do ano a situação estava crítica, apesar de termos alguns pontos de vantagem. As vitórias na Hungria e na Bélgica foram extremamente difíceis. A gente conseguiu ar para respirar [respira fundo]. E depois fomos juntando resultados daqui e dali, tirando tudo o que o carro permitia.

QUATRO RODAS — A McLaren é uma equipe grande, muito organizada e séria. Como é a sua relação de trabalho com ela?

SENNA— A McLaren é grande e à inglesa, o que faz o ambiente de trabalho parecer de muita seriedade. Mas existe também um empenho para quebrar esse gelo, que às vezes até incomoda. Tenta-se uma distensão, uma brincadeira. Como piloto, tenho que esticar a corda até o último milímetro para conseguir alguma coisa. Mas em outras ocasiões tenho que agir diferente: largar totalmente para que as pessoas façam as coisas mais tranqüilamente. Enfim, ser muito flexível, jogar de um extremo ao outro, de acordo com a situação.

QUATRO RODAS — Mas você é um piloto exigente, cobrador...

SENNA— Sou uma pessoa exigente comigo. E da mesma forma que exijo de mim, profissionalmente, cobro uma correspondência no mesmo nível daqueles que traba¬lham ao meu lado.

QUATRO RODAS — E um Fórmula-1 competitivo, o que representa na sua filosofia de felicidade?

SENNA — Está diretamente ligada ao potencial da máquina que me colocam à disposição. Um carro competitivo representa a possibilidade de lutar por uma vitória, por um campeonato. A chance de evoluir como piloto. Logo, o encontro com meu objetivo de ser vencedor. Um carro não competitivo vai em direção oposta a todos os princípios que tenho como motivação para a minha carreira.

QUATRO RODAS — Mesmo que você evite esse tema, são suas atitudes que detonam as grandes mudanças na F 1. Todo o circo, por exemplo, esperou sua definição pela McLaren para que os outros contratos fossem acertados...

SENNA— Sim, e daí?

QUATRO RODAS — Daí que você interfere em tudo na F 1, dentro e fora da pista, certo?

SENNA [um pouco conformado] — É, eu não sei se interferir é a palavra mais adequada. O certo talvez seja dizer que por estar numa grande equipe, que ganhou os títulos nos últimos quatro anos, automaticamente me coloco numa situação de responsabilidade, mas também de privilégio, por ter todas as opções disponíveis tanto no aspecto técnico como no comercial. Só que isso é apenas conseqüência do sucesso, mera conseqüência [dando de ombros].

QUATRO RODAS — Mera conseqüência que acabou por decidir o futuro de Nigel Mansell, no início desta temporada, quando ele estava decidido a abandonar a F 1...

SENNA [silêncio demorado, enchendo as bochechas de ar e soprando vagarosamente] — Em relação ao Mansell, eu acho que ele passou momentos muito difíceis na Ferrari, no ano passado, provocados pela convivência com o Prost. Tanto que chegou ao ponto de anunciar que iria parar de correr. De repente, essa situação se modificou, sabe-se lá por que razão.

QUATRO RODAS — Mas o Mansell disse que você foi decisivo na permanência dele nas pistas, por quê?

SENNA [meio encabulado] — Tudo o que fiz foi dizer que tinha negociado forte com a Williams [antes de renovar com a McLaren, no fim do ano passado] e achava que ele não deveria descartar a possibilidade de continuar na F 1. Acreditava que a Williams, com seu carro novo, era uma boa alternativa para ele. Tecnicamente e comercialmente, a equipe tinha meios de fazer uma boa oferta. Acho que isso contribuiu para que o Mansell se sentisse mais motivado. Mas foi uma decisão dele.

QUATRO RODAS — De qualquer forma, você contribuiu para ter na pista seu maior adversário ao tri-campeonato...

SENNA [rápido] — Ah, sem dúvida. Eu sabia disso, ele sempre foi um piloto forte, rápido. Um pouco instável, mas forte. Porém, naquela altura eu não estava levando isso em consideração. Eu simplesmente olhei a posição crítica dele e imaginei as dificuldades que estava passando na Ferrari. Afinal, eu já trabalhei com o Prost e sei exatamente o quanto é difícil conviver com ele.

QUATRO RODAS — Mas o Mansell chegou a criticar você e a elogiar o Prost antes desse episódio, não?

SENNA [estalando os nós dos dedos, sorriso velado e um certo ar de satisfação] — O Mansell, antes de trabalhar com o Prost, tinha uma idéia bem diferente — ele era contra mim. Mudou totalmente depois de trabalhar com Prost, porque sentiu na pele o que significa conviver com o francês. Foi por isso que eu resolvi dar um empurrão.

QUATRO RODAS— Você é um cidadão de um país de Terceiro Mundo e um piloto do primeiríssimo. O que representa esta diferença?

SENNA— Você acompanha a minha carreira desde o início e sabe os benefícios e também as dificuldades que isso me trouxe. Sim. porque ser brasileiro não traz apenas dificuldades. Pelo menos é assim que eu penso. Depois de dez anos fora do Brasil e tendo uma situação privilegiada, estou numa posição de responsabilidade perante tanta gente que me acompanha com entusiasmo. Então, o fato de ser brasileiro com relação ao que eu faço, ao que fiz, ao que sou, só me enche de orgulho.

QUATRO RODAS — Sempre?

SENNA— Tem certos momentos que o fato de ser brasileiro poderia causar alguns constrangimentos devido à situação em que o Brasil se encontra. Mas eu estou com a cabeça feita. Dentro da minha atividade e das minhas possibilidades, atingi um nível de credibilidade e de admiração. Coisas, creio, que todo o ser humano gostaria de alcançar. Por isso, só tenho motivos para me alegrar por ser brasileiro.

QUATRO RODAS — Quando você assinou o seu atual contrato com a McLaren — durante o GP de Portugal —, afirmou: "Eu tenho tudo o que quero''. Realmente não falta nada mais a alcançar?

SENNA— Olha. eu encaro cada ano como um desafio. Primeiro, era chegar à F1; depois, vencer a primeira prova, a primeira pole position. Eu fui preenchendo todos esses sonhos, todos os desejos. Aí veio o primeiro título mundial; o desafio do segundo, no qual, de alguma forma, tentaram me passar uma rasteira. Mas foi uma rasteira que acabou se transformando numa reconquista, numa auto-afirmação para mim.

QUATRO RODAS — O Alain Prost, aliás, disse que nenhum piloto vale um contrato de 15 milhões de dólares por ano.

SENNA— Eu acho que tem gente que vale mais que essa quantia e outros que valem menos. Tudo é uma questão de valor. Cada pessoa tem suas qualidades e defeitos. Não existem duas iguais no mundo.

QUATRO RODAS — Bom, mas você tem mesmo tudo o que quer?

SENNA— Bem, isso é relativo ao dia de hoje. ao momento em que eu vivo agora. Em relação ao futuro... [pausa] ...tenho outras ambições. Não vejo a ambição como um defeito, desde que seja um sentimento controlado e equilibrado. [Quase num tom de oração.] Eu sou um homem que sonha, que gosta de evoluir constantemente em todos os sentidos. Eu, com certeza, só quero melhorar. Seja com as pessoas que vivem diretamente ligadas a mim, seja como profissional. Quero melhorar o relacionamento comigo mesmo.

QUATRO RODAS— E há algum conflito?

SENNA[sem tomar conhecimento da pergunta, tocando a mão à altura do coração, segue sua auto-análise] — Quero estar em paz com a vida que eu levo, com meu estilo de viver, com o que me espera no futuro. Enfim, quero melhorar em tudo o que for possível.

QUATRO RODAS — E, além de todos esses propósitos, existe um mais especial?

SENNA— Melhorar também no sentido de um dia constituir uma extensão da minha atual família, que seria uma nova vida. um casamento, crianças. Tudo o que faz parte da vida de um homem, de uma mulher.

QUATRO RODAS — Você tem falado muito em casamento e crianças. Você gosta mesmo de crianças?

SENNA[terno, como se recordasse de alguém] — Eu hoje gosto mais de crianças do que gostava há um ou dois anos. Acho que isso é algo que vai amadurecendo no coração da gente. A medida que o tempo vai passando, esse sentimento cresce.

QUATRO RODAS — Além do tempo, o que despertou esse sentimento em você?

SENNA [um tanto vulnerável] — A gente vive hoje em um mundo duro, que machuca qualquer pessoa. E fica cada vez mais difícil viver nele — ou apenas sobreviver. E, mesmo no meu mundo, que para tanta gente é irreal, eu tenho muita coisa boa, mas também enormes dificuldades. Entre tantas conquistas, também tive grandes perdas, frustrações. Por isso a tendência de procurar cada vez mais um relacionamento sincero com pessoas em que a gente acredite e possa confiar. A criança, mesmo que seja uma criaturinha que você nunca viu, tem por natureza algo de muito puro dentro de si para oferecer, demonstrar ou dividir. Assim, é muito mais fácil se comunicar com uma criança. Basta trocar um olhar, um sorriso, um simples gesto.

QUATRO RODAS— Como piloto, você é transparente, o mundo conhece seus recordes, sua carreira. Mas alguém, fora da sua família, conhece o homem Ayrton Senna?

SENNA [um tanto irónico] — Eu acho que as pessoas de coração aberto me conhecem melhor do que as de coração fechado.

QUATRO RODAS— A fama implica alguma perda nesse processo?

SENNA — A fama trabalha diretamente contra a privacidade e a nossa liberdade. E um conflito constante.

QUATRO RODAS— E o dinheiro?

SENNA— A rigor, só trouxe muitas emoções para mim. E. até hoje, no geral, tem proporcionado coisas boas. Mas ele é um risco no mundo moderno [pausa, riso tímido] para quem o tem.

QUATRO RODAS — E para quem não o tem?

SENNA— Para quem não tem dinheiro, é um problema também sério. Mas eu prefiro olhar para o lado positivo. Apenas pelo benefício que o dinheiro me deu. Em resumo, ele veio do sucesso que obtive.

QUATRO RODAS — Agora, algumas definições do cidadão Ayrton Senna. Política?

SENNA— É algo de que eu não gosto.

QUATRO RODAS — O que é arte para você?

SENNA— É o modo de cada um se expressar e ser.

QUATRO RODAS— E qual é o tipo de arte que mais o sensibiliza?

SENNA— Eu sou muito ligado no som, na música.

QUATRO RODAS — Mas você é de assoviar, cantarolar uma música?

SENNA— Sou, e muito. Claro que só nos momentos de descontração. Infelizmente a F1 é muito tensa e encobre essa minha maneira de ser.

QUATRO RODAS — Você se declarava fã de Milton Nascimento. Ainda curte a música dele?

SENNA— Eu adoro a música brasileira. Hoje gosto muito mais de música do que há cinco anos. Ampliei meu gosto, que vai da MPB ao clássico ou à New Age. Gosto de tudo, com raras restrições. Ouço Bach, Mozart, Chopin, Beethoven onde quer que eu vá.

QUATRO RODAS — Quais são os seus carros de rua?

SENNA [apontando para o Honda NSX vermelho placa SX-2559] — Aquele ali, mais um Monza da GM que tenho em Mônaco, além de uma perua Mercedes e um Gol que uso no Brasil.

QUATRO RODAS — Quem fabrica os melhores carros convencionais: Estados Unidos, Europa ou Japão?

SENNA— Os japoneses e os alemães.

QUATRO RODAS — Em matéria de segurança ou desempenho?

SENNA— Em tudo. Eles têm a melhor tecnologia atualmente.

QUATRO RODAS — E os carros brasileiros?

SENNA— Os brasileiros... Bem. acho que com a abertura da importação eles estão evoluindo. Mas ainda têm muito a progredir. Temos as multinacionais que produzem os mesmos carros feitos em outros países. É apenas uma questão de troca de tecnologia e um compromisso maior com a segurança, o conforto, a qualidade e o desempenho. Algo sobre como cada companhia deverá se posicionar em relação ao futuro do carro brasileiro.

QUATRO RODAS — E o mundo atual, com fome de guerras, o preocupa?

SENNA — Atualmente, tudo o que acontece no mundo, seja o que for, corre rapidamente por todo o planeta. Mas as guerras, os conflitos, sempre existiram. As tragédias e as alegrias fazem parte da história do homem. O mundo não mudou nada. Existe, isso sim, uma conscientização maior das conseqüências das tragédias.

QUATRO RODAS— E Deus?

SENNA [silêncio profundo] — Ele está aí, vivo para todo mundo, para todos que quiserem vê-lo. Para uns, mais próximo; para outros, um pouco mais distante. É uma questão de procurar e de querer.

QUATRO RODAS — Você encontra ou procura mais por Ele?

SENNA [sério, praticamente em meditação] — Eu preciso muito Dele. É uma fonte de vida muito grande para mim. De uns anos para cá, essa presença se acentuou em minha vida, no meu dia-a-dia.

QUATRO RODAS — E você tem a paz interior que sempre busca?

SENNA— A paz é muito importante no estilo de vida que eu levo. É necessária para se ter equilíbrio, suportar viagens, pressão, stress, cobrança, responsabilidade, perigos. Se você não estiver em paz, não consegue conviver com tudo isso.

QUATRO RODAS — Qual é a sua receita para se ter paz interior?

SENNA— A paz, creio, vem do caráter, da educação, da sua personalidade. A partir do momento em que você é integralmente responsável por suas atitudes, pelo seu futuro, passa a fortalecer uma situação de equilíbrio e paz. Depois, depende da sua forma de administrar o seu crescimento.

QUATRO RODAS— E sobre o amor?

SENNA [sorriso, agrada-lhe muito a definição que vai dar] — É um sentimento que sempre gritou alto no meu peito, desde criança, e continua forte como nunca.

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