quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Donington por Eduardo Correia

Se Prost achou que houve água em excesso em Interlagos, ele não perdia por esperar a corrida seguinte, em Donington.

A chuva caía pra valer na manhã da corrida. Senna estava em quarto na largada, atrás dos Williams e de Schumacher. Quando a luz verde acende, os quatro primeiros partem bem e chegam antes à curva. Atrás deles, houve um festival de largadas inesquecíveis. Naquelas condições, a pista favorecia a juventude e a ousadia, e não faltavam jovens ousados naquele grid. Karl Wendlinger, da Sauber, sai do 18º lugar do grid para terceiro antes da metade da primeira volta. Rubens Barrichello, de 17º vai para quarto. Houve outras largadas inesquecíveis, mas todas elas seriam reduzidas a pó pela primeira volta de Senna.

Ele está por fora na primeira curva e é rudemente apertado por Schumacher. Faltou pouco para um toque entre ambos, que poderia ter liquidado a corrida de Senna.

- A partir do momento em que o Schumacher me deu o aperto, eu guiei como costumava guiar nos tempos de Fórmula Ford, sobretudo em condições bem difíceis. A pista tinha muita água, os carros pesados, com tanque cheio, os pneus com pressão baixa, frio. Era uma situação de muitas interrogações. Agente não sabe o ponto de frenagem numa curva. Não sabe se vai travar o freio dianteiro, se vai escorregar ou não vai, se vai aquaplanar ou não, se vem alguém em cima de você. É tudo uma loteria. É totalmente baseado no instinto: pilotar de uma forma agressiva mas ao mesmo tempo ter um controle tremendo, ter um domínio muito grande sobre si próprio e a máquina...

Ayrton faz uma pausa.

- Como eu posso te dizer? Você deixa a máquina te absorver. É como se você derretesse dentro dela e ocupasse todos os cantos que existem e se transformasse numa única coisa, totalmente integrada àquele momento: a água, a chuva, a incerteza, a falta de referência, o medo e a indecisão dos outros pilotos. Você se arrisca a jogar tudo fora no primeiro minuto e meio, e a corrida tem mais uma hora e 58 minutos e meio. Você precisa estar muito seguro para não fazer papel de idiota e sair reto, ir para a caixa de brita e ficar ali parado...

- Mas aí entra exatamente a sensibilidade de saber que aquele minuto e meio vale por um GP. Você ia jogar tudo ali. Ao mesmo tempo, não é simplesmente blefar: é preciso a certeza de que é aquilo mesmo o que você tem que fazer. Dessa forma, não existe meio termo, não existe o momento de indecisão que é quando você comete os erros e deixa brechas para problemas. Você entra sabendo exatamente por que vai fazer, como vai fazer e vai fazer. Você adquire uma autoridade muito grande... e acabou dando o que deu. Foi realmente uma volta espetacular. Prost, Hill e quem tinha chance de ganhar demorou cinco ou seis voltas para encontrar o ritmo.

Prost nos testes em Ímola, depois da corrida, procurou o engenheiro da Brembo, que fabricava os freios para McLaren e Williams, e quis saber se Senna estava usando freios ABS em Donington; ele simplesmente não podia acreditar que o brasileiro estava segurando o carro daquele jeito, sem travar as rodas. Prost já estava treinando com aquele sistema e sabia das vantagens. Mas a McLaren não tinha nada parecido. Eram apenas as virtudes de Senna que Prost vira passar por ele naquele domingo.

A ultrapassagem sobre Karl Wendlinger foi especialmente impressionante. Senna se lembrava dela?

- Lógico. Ali é um mergulho. Tem a primeira curva, depois uma de 90 graus à direita. Você acelera, põe terceira, quarta, quinta, e ali já estaria na sexta no seco. Com chuva, quinta. Então você mergulha num “S” rápido continuamente à direita e de repente à esquerda, aí freia e vai para uma curva à direita. Foi no meio do “S” que tirei por fora e fui em frente. Foi uma manobra calculada porque eu sabia que ali o líder ia maneirar um pouco, o segundo mais um pouco, o terceiro mais um pouco e assim por diante. Todos teriam uma atitude, digamos, muito reservada e...

- Ninguém escaparia que você viesse por fora, embalado.

- Sim, ninguém ia esperar isso, que eu estivesse seguro da velocidade ideal. Mas eu já estava suficientemente integrado, tinha derretido dentro do carro desde a primeira curva. Então executei a manobra. Vim embalado, tirei e passei batido, por fora, e já preparei a ultrapassagem sobre Hill. Eu estava determinado. Sabia que a minha chance estava ali, na primeira volta, se eu conseguisse recuperar as posições da largada, inclusive aquelas que eu perdi por ter largado mal. Eu sabia que a minha chance estava ali, quando todo mundo estava se achando, e as vantagens de pegar a liderança numa corrida como aquela, com pista limpa, sem problemas de visibilidade e guiando agressivamente, me permitiram abrir uma diferença nas duas primeiras voltas. Isso ia descontrolar a cabeça dos caras que depois precisariam recuperar a diferença. Eu tinha aquilo muito claro. Era uma questão de estratégia fundamental para aquela corrida, e também uma questão de prazer pessoal, executar aquelas manobras com sucesso. Não era jogar tudo ou nada e se desse errado tudo bem. Não. Jogar para valer mas com muita segurança, sem blefar.

- Deu para perceber o que estava fazendo, durante a corrida?

- Você precisa ter sensibilidade para administrar o que estava fazendo. É importante saber quando apertar o ritmo ou administrar a vantagem. Você pode estabelecer uma estratégia antes da corrida, mas tem de revê-la a cada volta em função do que está acontecendo na pista. As coisas vão acontecendo e você vai tendo de recombinar as coisas. É uma coisa fascinante, até. É um quebra-cabeça em que você posiciona as peças antes da largada imaginando como vai montá-las, mas aí vem alguém e mexe no tabuleiro: as peças saem da ordem. Você precisa recolocá-las novamente para chegar ao mesmo resultado. Pegar a peça certa e colocá-la no lugar no momento certo é que faz o resultado.

A corrida é um espetáculo de condução de Senna e um festival incrivelmente bufo de erros de Prost e da Williams. Alguma coisa acontece com a mente do francês quando a água cai sobre seu capacete. É verdade que as condições da pista mudavam no ritmo de um ascensorista maluco, desses de desenho animado.

A pista secou e molhou de novo tantas vezes que ninguém se deu ao trabalho de contar. Prost e Hill pararam nos boxes 13 vezes, trocando tantos pneus que a Williams teve de recolocar pneus já usados, uma mácula insuportável para tamanho requinte tecnológico. Enquanto isso, Senna parava apenas quatro vezes. Johnny Herbert, da Lotus, incrivelmente, parou apenas uma vez.

Donington em 93 é a obra-prima de Senna, a Nürburgring-36 de Nuvolari, a Nürburgring-57 de Fangio, a Indianápolis-65 de Clark. Só um Grande Senhor das Pistas pode conseguir uma vitória como aquela.

Para Prost, a humilhação é profunda, apenas umas poucas gramas mais leve do que San Marino-91. Uma coda cruel foi acrescentada por Senna, na entrevista coletiva ao final da corrida. Prost se lamentava interminavelmente sobre seu carro:

- As rodas traseiras travavam quando eu mudava de marchas, os freios funcionavam mal, a embreagem encrencou, o câmbio deu problemas, os pneus slick... a pista...

Senna, que ouvia tudo ao seu lado, com aquele ar bovino que os pilotos assumem durante as coletivas, rompeu a letargia, deu-lhe um tapinha nas costas e disparou:

- Por que você não troca comigo?

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